Luís Herberto



O sangue que em ti derramo é também o meu…(estudo para O que faz falta é malhar na malta…), 2018. 
Óleo sobre tela, 100 x 100 cm.



O que faz falta é malhar na malta!

Apropriando-me do título da canção que Zeca Afonso escreveu e gravou em 1974, reavivando igualmente uma justa memória à sua obra, resolvi extrapolar alguns dos conteúdos das palavras de O que faz falta, adaptando na temática escolhida e nos registos gráficos resultantes, diversos momentos em contextos sociopolíticos e transgeracionais, em diversas geografias e igualmente em diferentes opções ideológicas e políticas, nestes quarenta e poucos anos da democracia portuguesa e na sua relação com o exterior.
Mesmo com claras diferenças nos contextos sociais e neste intervalo temporal, nota-se que nos movemos na cegueira. Cegos ao que está claramente à nossa volta, cegos ao que acontece um pouco mais ao lado e do outro lado do globo. Estamos cegos aos atropelos incessantes a direitos básicos que ambicionamos para a condição humana, completamente anestesiados na materialidade e na comunicação visual mediática que preenche a cultura de massas. A tudo isto assistimos com inércia, num zapping inquieto que vai caracterizando a existência de muitos de nós, neste mundo da pós-televisão de acesso global. Em simultâneo e de um modo estrategicamente direccionado, os poderes políticos em exercício conseguem habilmente reverter a seu favor esta parafernália mediática, com discursos e actividades quase circenses, na expectativa da garantia de permanência inerte na agenda programada pelas lógicas económicas.
Optei por acomodar neste projecto, que será apresentado individualmente no Museu da Guarda, em Agosto próximo, imagens da actuação de forças policiais e paramilitares, em cenários retirados de algumas cinematografias, do jornalismo televisivo, igualmente do registo histórico existente nos inúmeros servidores da internet, acrescido de encenações no atelier para uma mais prática estruturação destes documentos visuais. São quase exclusivamente momentos reactivos em manifestações várias, sobretudo quando estão em causa atropelos claros à dignidade social e aos mais elementares direitos da nossa existência social e democrática. Contudo, estas acções repressivas denotam sem surpresa, inúmeras contradições, sem esquecer que os seus actores cumprem os seus papéis, em encenações e produções de carácter duvidoso.
O sangue que em ti derramo é também o meu…, alerta para esta situação pouco clara, talvez mais pelo seu título e menos pela composição, apesar de por vezes, há quem leve estas encenações demasiado à letra. Nas referências documentais para a execução deste programa, incluí igualmente as muito actuais pinturas de Júlio Pomar alusivas ao Maio de 68, elas próprias também estruturadas em momentos sociais reactivos, sem esquecer outras encenações semelhantes, mais precisamente as batalhas de Paolo Ucello, que o pintor tomou como ‘suas’, no tema e na sua adaptação, e que agora prosseguem o seu caminho construtor. Estas citações artísticas e fotojornalísticas são irrecusáveis e incontornáveis: Pomar tem sido ciclicamente uma lição de gesto e expressão gráfica, na acção do pincel e da tinta sobre o suporte.
O que faz falta é malhar na malta… está visualmente dividido em duas partes: momentos violentos e consequente acção/ reacção dos seus actores, em registos intensos e socialmente politizados na sua exegese social e o registo suave da cegueira instalada em todos nós. Quer dizer, uns mais que os outros!


Luís Herberto, Lisbon, January 2018



O que faz falta… é malhar na malta!

Taking over on Zeca Afonsos’s song title, “O que faz falta”, recorded in 1974 and also reviving a fair memory of his work, I decided to travel around on some of the contents of its words. In a free translation, means something like “What is needed… is beating the guys!” The first drawings on this project are adapted from the chosen theme, within several moments in socio-political and transgenerational contexts, in quite a few geographies, ideological and political options, in these forty years of Portuguese democracy and its foreign relations. Even with clear contrast in the evolution of social contexts and in this period, we notice that we move in blindness. Blind to what is clearly around us, blind to what happens a little more to the side and also about the other side of the globe. We are blind to the incessant abuses of basic rights that we aspire to the human condition, completely anesthetized in the materiality and visual communication that block up the mass culture. To all this we watch with inertia, in a restless zapping that is characterizing the existence of many of us, in this world of post-television of global access. At the same time, and in a strategically directed manner, the political powers in office are able to skillfully revert to their favor this media paraphernalia, with almost circus speeches and activities, in the expectation of the guarantee of passive permanence in the theie economic logics programmed agenda. I chose to accommodate in this project, which will be presented individually in the Museum of Guarda, next August, images of police and paramilitary forces in action, with scenarios also taken from some movies, TV journalism, internet, plus some staging in my studio with live models, for a more practical approach of these visual documents. They are almost exclusively reactive moments in various riots and manifestations, especially when they are about clear violations of the social dignity and the most basic rights of our social and democratic existence. However, these repressive actions reveal, without surprise, innumerable contradictions, not forgetting that their actors fulfill their roles in scenarios and productions of dubious character. The blood that I pour out on you is also mine ..., alert to this indeterminate situation, perhaps more by its title and less by the composition, although sometimes there are those that take these scenarios too much to the letter. In the documentary references for the execution of this program, I also include the very current paintings by Júlio Pomar on May 68, also structured in reactive social moments, not forgetting other similar scenarios, more precisely the battles of Paolo Ucello, that the painter has taken as his major reference in this work, in the theme and its adaptation, and which now proceed on its constructive way. These artistic and photojournalistic quotations are beyond reproach: Pomar has been cyclically a lesson in gesture and graphic expression, in the action of the brush and paint. O que faz falta… é malhar na malta! is visually divided into two parts: violent moments and the consequent action / reaction of its actors, in intense and socially politicized registers in their social exegesis and the soft record of the blindness installed in all of us. I mean, some more than the others!

Luís Herberto, Lisbon, January 2018




Luís Herberto nasceu em 1966, em Angra do Heroísmo, Açores. É Doutor em Belas-Artes/ Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL, 2015), com a tese ‘Imagens interditas? Limites e rupturas em representações explícitas do sexo no pós-25 de Abril’, com orientação do Professor Ilídio Salteiro, tendo concluído a Licenciatura em Artes Plásticas/ Pintura na mesma instituição, em 1998.

No presente, é Professor na Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior (UBI), na Covilhã, onde lecciona desde 2003, sendo membro integrado da unidade de investigação LabCom/ IFP (UBI), no grupo Artes e Humanidades e igualmente investigador colaborador no CIEBA/ FBAUL. Tem publicações com incidência na interacção entre questões do género, sexualidade, provocação e arte. Está representado no ISPA-Instituto Universitário, na Fundação D. Luís (Cascais), Museu da Guarda, Museu de Setúbal e diversas colecções particulares, em Portugal e outros países. Expõe individual e colectivamente desde 1991.

Portfolio digital disponível em www.luisherberto.com.