Série “evidências”, 20
fotografias de pinturas feitas no local, dimensões variáveis, 2016.
Arte e Substituição
João Paulo Queiroz
..."Todo aquele
que vive da Verdade escuta a minha voz."
Pilatos replicou-lhe:
"Que é a verdade?"
Jo 18, 37-8
1.Sobre a pintura e
sobre a substituição
A pintura faz-se no tempo. O sentido existe fora da pintura,
sempre, embora na pertinência da pintura. A arte relaciona e estabelece
palavras com coisas, de modo inesperado, mas importante. A sua trajetória
parece ser um caminho para uma emancipação da motivação. A arte reproduz-se
(Benjamin, 1992) primeiro mecanicamente, depois virtualiza-se.
O mesmo acontece com o dinheiro. Ao princípio era apenas uma
troca entre mercadorias, mercadorias mais perecíveis por outras de valor
estável, como o sal, o ouro. Depois começou a emancipar-se em relação ao seu
referente: unidades cunhadas em moedas, e o seu peso deixa de corresponder ao
seu valor, a moeda é código. As notas são crédito: um contrato, valor
fiduciário.
2. Pintura e
referente
O dinheiro substitui uma coisa, um serviço, uma hora de
trabalho: um pagamento acerta um equilíbrio entre o desempenho e a coisa - como
na relação entre a 'parole' e a 'langue' (Saussure, 1999). Também ao pintar, o
pintor coloca uma pintura entre ele e as coisas do mundo. É uma substituição,
uma ficção, uma mentira, uma fabricação. Ao mesmo tempo a pintura levantada à
frente da Natureza é ela mesma uma Natureza, uma substância significante, um
objeto que se acrescenta aos outros (Lotman, 2000).
Assim são feitas estas imagens, a dois tempos, de modo
simples: primeiro, no terreno, coloco à frente da Natureza, a minha pintura, a
faço-a de modo atento, procurando uma verdade nos materiais e nas coisas.
Depois de uma horas, a pintura parece pedir um descanso, e ser dada por
terminada.
3. Evidentemente
A imagem sustenta-se aos meus olhos, o que me interessou
está mais ou menos resolvido em pastas de pastel de óleo espesso: nesse
instante levanto a pintura ao lado do seu referente, assim lado a lado e, com
uma máquina fotográfica, enquadro pintura e referente numa nova imagem.
Primeiro, entre mim e a Natureza, há agora dois objetos: uma
máquina com uma fotografia a fazer-se, e à sua frente uma pintura terminada. A
fotografia torna evidente esta relação que passou a existir entre aquela
natureza e aquela pintura. A fotografia documentou-a. Ou seja, tornou-a
evidente, e é ela mesma uma prova, um indício.
Mas as coisas são também complicadas, quando as fotografias
têm relevância autoral: só eu as posso fazer, mais ninguém. São elas mesmas um
novo registo artístico assente num plano de conotação sobre o primeiro registo.
As fotografias servem de avalização da verdade ficcional das pinturas. Veja-se
como as pinturas são verdadeiras - afinal entre elas e os seus referentes há
tudo em comum. Mas a pintura apresenta-se ao lado do referente, e portanto
apresenta-se nestas 'fotografias evidentes' como um artefacto de ficção.
É assim também evidente que todo o dinheiro é falso -
depende do acordo cultural. E também que a pintura é sempre falsa - toda ela é
artefacto. A pintura tem um valor de verdade na imaginação partilhada, como o
dinheiro. Verdade. "Mas afinal o que é a verdade?"
Referências
Benjamin, Walter (1992) "A
obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", In Sobre Arte, Técnica,
Linguagem e Política, Lisboa: Relógio d'Água.
de Saussure. Ferdinand (1999) Curso de Linguística Geral. Lisboa: Dom Quixote. ISBN: 9789722000567
Lotman, Iuri. (2000) La Semiosfera III: semiótica de las artes y
de la cultura. Madrid: Ediciones Cátedra. ISBN:
84-376-1821-5
Art and
replacement
João Paulo Queiroz
..." Every lover of what is true gives ear to my voice.
Pilate said to him, True? what is true? "
Jo 18, 37-8
1.About painting and
replacing
Painting is done in
time. Meaning exists outside of painting, always, although meaning is in the
pertinence of painting. Art relates and establishes words with things, and this
in an unexpected but important way. Its trajectory seems to be a path to an
emancipation of the reference. Art reproduces itself (Benjamin, 1992) first
mechanically, then virtually. The same happens with money. In the beginning it
was only trade of commodities, commodities more perishable traded by others of
stable value, like salt, gold. Then this first currency began to emancipate
itself in relation to its referent: units are minted in coins, and its weight
no longer corresponds to its value, currency is then a code. The bank notes are
credit: a contract, with fiduciary value.
2. Painting and
reference
Money replaces things,
a service, an hour of work: payment sets a balance between the performance and
the thing - as in the relationship between 'parole' and 'langue' (Saussure,
1999). When painting, the painter places a painting between him and the world.
It is a substitution, a fiction, a lie, a fabrication. At the same time the
painting raised in front of Nature is itself Nature, a signifying substance, an
object that is added to the others (Lotman, 2000).So these images are made in
two simple ways: first, on the field, I place the painting in front of Nature,
I do it in an attentive way, searching for truth in the materials and things.
After a while, the painting seems to ask for a rest, and to be considered
finished.
3. Obviously
The image holds in my
eyes, and what interested me is more or less settled in thick pastel oil
pastels: at that moment I raise the painting next to its referent, side by side
and, with a camera, I picture in the frame both the painting and its referent
in a new image.
First, between me and
Nature, there are now two objects: a machine with a photograph in the making,
and in front of it, a finished painting. Photography makes evident this
relation that started to exist between that nature and that painting. The
photograph documented it. That is to say, it made it evident, and is itself a
proof, an index.
But things are also
complicated, when photographs have authorial relevance: only I can shoot them,
nobody else. They are themselves a new artistic register based on a plan of
connotation on the first register. Photographs serve as an endorsement of the
fictional truth of paintings. Let's see how the paintings are true - after all,
between them and their referents, there is everything in common. But the
painting stands next to the referent, and therefore presents itself in these 'evident
photographs' as an artifact of fiction.
It is thus also
evident that all money is false - it depends on the cultural agreement. And it
is also evident also that painting is always false - all of it is artifact.
Painting has a truth value in shared imagination, like money. Truth. "True? what is true?"
References
Benjamin, Walter (1992) "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", In Sobre Arte, Técnica,
Linguagem e Política, Lisboa: Relógio d'Água.
de Saussure. Ferdinand (1999) Curso de Linguística Geral. Lisboa: Dom Quixote. ISBN: 9789722000567
Lotman, Iuri. (2000) La Semiosfera III: semiótica de las artes y
de la cultura. Madrid: Ediciones Cátedra. ISBN: 84-376-1821-5
JOÃO PAULO QUEIROZ (Portugal). Curso Superior de Pintura
pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Mestre em Comunicação pelo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Doutor em
Belas-Artes pela Universidade de Lisboa. É professor na Faculdade de
Belas-Artes desta Universidade (FBAUL). Professor nos cursos de doutoramento em
Ensino da Universidade do Porto e de doutoramento em Artes da Universidade de
Sevilha. Livro Cativar pela imagem, 5 textos sobre Comunicação Visual FBAUL,
2002. Coordenador do Congresso Internacional CSO (anual, desde 2010) e diretor
das revistas académicas: Estúdio, ISSN 1647-6158, Gama ISSN 2182-8539, e Croma
ISSN 2182-8547. Coordenador do Congresso Matéria-Prima, Práticas das Artes
Visuais no Ensino Básico e Secundário (anual, desde 2012). Dirige a Revista
Matéria-Prima, ISSN 2182-9756. Membro de diversas comissões e painéis
científicos, de avaliação, e conselhos editoriais. Diversas exposições
individuais de pintura. Presidente da Sociedade Nacional de Belas-Artes.
Presidente do CIEBA, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes da
ULisboa. Prémio de Pintura Gustavo Cordeiro Ramos pela Academia Nacional de
Belas-Artes em 2004.